Em sua 12ª edição, o festival — com programação distribuída ao longo de dois fins de semana consecutivos — estreou com uma mistura de gêneros que foi do Blues ao Rock, passeou pelo Soul e foi até o Pop e Britpop.
Fotos por Gustavo Palma e Allan Fernandes
No último fim de semana (07 e 08), o palco do Auditório do Ibirapuera, em São Paulo, foi o cenário de apresentações marcantes que abriram a programação da 12ª edição do Festival Best Of Blues and Rock. Queridinho dos paulistanos, o festival também atrai público de outros estados — e até de fora do país.
No sábado, o line-up reuniu Cachorro Grande, Vitor Kley, Richard Ashcroft e Dave Matthews Band. Já no domingo, o destaque ficou por conta de Paula Lima com o projeto Soul Lee — uma homenagem poderosa a Rita Lee com seus clássicos inesquecíveis — além de Barão Vermelho e o retorno de Ashcroft e Dave Matthews Band. Apesar de repetirem a presença no palco em dias consecutivos, os dois últimos artistas entregaram experiências distintas e igualmente intensas, surpreendendo o público com shows únicos a cada noite.
A experiência de viver o Festival
Nem tudo na música é só sobre a música. Viver um festival é, acima de tudo, uma experiência — que passa por como o dia foi vivido, por como ouvir sua banda favorita te tocou, por descobrir novos sons de artistas que você nunca tinha escutado e, às vezes, até por rever seus próprios preconceitos ao se surpreender com um show de quem você não esperava muito. É sobre sentir, se permitir e se abrir ao novo. E tudo isso só é possível quando o ambiente está preparado para isso — e o Best Of Blues and Rock sabe muito bem como proporcionar essa experiência.
A organização do festival foi exemplar: cuidou dos detalhes, valorizou o conforto do público e mostrou que eventos grandiosos podem, sim, ser agradáveis do início ao fim. Muitos outros festivais por aí poderiam — e deveriam — se inspirar nesse cuidado, porque viver um festival deveria ser mais sobre experiências memoráveis do que sobre perrengues desnecessários.
O fato de o festival acontecer na área externa do Auditório do Ibirapuera já garante, por si só, um cenário de beleza natural. Mas a experiência vai além: a organização se destacou ao oferecer uma entrada segura e acessível, praça de alimentação variada, estandes com atividades para toda a família, pontos de hidratação, banheiros bem sinalizados e, o mais importante, uma circulação tranquila por todos os espaços.
Era possível assistir aos shows, sair para se hidratar e retornar ao mesmo lugar com total tranquilidade — sem o sufoco e os perrengues que muitos festivais ainda insistem em normalizar. Não por acaso, era comum ver famílias, crianças e idosos aproveitando o evento. Um ambiente acolhedor, bem estruturado e com boa música do começo ao fim. Algo que tem sido extremamente raro de encontrar em São Paulo.
Primeiro dia com: Cachorro Grande e Vitor Kley
O rock gaúcho marcou presença no festival por meio de dois grandes nomes que representam gerações distintas. A Cachorro Grande tem quase o mesmo tempo de estrada que Vitor Kley tem de vida — e, ainda assim, ambos conseguiram sintetizar suas essências e encontrar um ponto de encontro na música. O resultado foi uma prova de que rock e pop podem dialogar perfeitamente, conquistando um público cada vez mais aberto a experiências diversas e menos preso a rótulos.
No palco, abrindo o primeiro dia de shows, a Cachorro Grande reafirmou por que é considerada uma das maiores representantes do rock gaúcho. Com um repertório carregado de clássicos como “Sinceramente”, “Dia Perfeito” e “Sexperienced”, a banda entregou uma apresentação enérgica e autêntica, guiada por riffs poderosos, vocais intensos e uma presença de palco elétrica. Foi mais do que um show — foi uma verdadeira celebração do rock, que conquistou tanto os fãs veteranos quanto quem estava descobrindo a banda ali, ao vivo, embalados por um som pulsante e atemporal.
Na sequência, Vitor Kley subiu ao palco com sua energia solar e cativante, conquistando o público desde a primeira música. Com hits como “Pupila”, “Adrenalizou” e “O Sol” — que encerrou a apresentação—, ele alternou momentos intimistas e vibrantes, sempre com leveza e conexão genuína. Ainda surpreendeu ao incluir “Don’t Look Back In Anger” e “Wonderwall”, do Oasis, ele disse que foi um pedido especial da organização e foi recebido com entusiasmo pela plateia.
O britpop mais vivo do que nunca com Richard Ashcroft
Um dos shows mais aguardados do dia foi o de Richard Ashcroft, ex-líder do The Verve e figura central do britpop nos anos 1990. A banda foi um verdadeiro fenômeno da época, alcançando projeção mundial com o álbum Urban Hymns (1997), que trouxe o hino atemporal “Bitter Sweet Symphony”. Apesar do fim definitivo do grupo em 2009, o legado do The Verve permanece vivo, e Ashcroft segue trilhando uma carreira solo de respeito, mantendo sua relevância e magnetismo nos palcos.
Antes da apresentação, Richard participou de uma coletiva de imprensa com alguns jornalistas — e eu tive a honra de estar entre os presentes. Com simpatia e entusiasmo, o britânico falou sobre sua carreira, influências e as expectativas para sua aguardada estreia no Brasil. Mostrou-se genuinamente empolgado e aproveitou para expressar sua admiração por ídolos do esporte brasileiro, como Ronaldo, Zico, Sócrates e Júnior. Em um gesto simbólico que emocionou o público, subiu ao palco vestindo uma camisa em homenagem a Ayrton Senna — figura que fez questão de exaltar com entusiasmo durante a coletiva.
Ashcroft comentou que queria tocar exatamente o que o público esperava ouvir — uma forma de compensar a longa espera por sua vinda ao Brasil. Reconheceu que, após tantos anos, era justo entregar um repertório repleto de momentos marcantes, transitando desde os clássicos do The Verve até os maiores sucessos de sua carreira solo.

Foi nesse clima de entrega ao público que “Sonnet” abriu o setlist da noite. Das oito faixas apresentadas, seis eram do tempo de Ashcroft com o The Verve — um número significativo, especialmente para um artista com mais de cinco álbuns em sua carreira solo. Mas, como ele mesmo afirmou, a ideia era justamente retribuir o carinho dos fãs que aguardaram tanto tempo por sua vinda ao Brasil. E ao priorizar esse repertório, demonstrou consciência de que foi o legado com o The Verve que o levou até ali. Uma atitude de respeito e generosidade artística que, pessoalmente, admiro muito.
Uma das poucas faixas solo presentes no set, “Break the Night With Colour” foi dedicada ao ídolo estampado em sua camiseta: Ayrton Senna. Durante a performance, Richard apontou diversas vezes para o peito, reforçando a homenagem ao piloto brasileiro. Para encerrar a noite em grande estilo, ele entregou uma sequência arrebatadora com três clássicos do The Verve: “The Drugs Don’t Work”, “Lucky Man” e, por fim, o hino “Bitter Sweet Symphony” — esta última, dedicada com carinho a Zico, fechando essa primeira apresentação com emoção à flor da pele.
Dave Matthews Band em quase três horas de entrega, qualidade e muita emoção
“Don’t Drink the Water” é a faixa escolhida para abrir a noite e é nesse instante que se percebe a grandiosidade do que está por vir. E já adianto: assistir a quase três horas de show da Dave Matthews Band é um verdadeiro privilégio. O público tomava cada espaço da área externa do Auditório do Ibirapuera — olhos atentos ao palco e ao telão, mas, acima de tudo, com corpo e alma prontos para absorver cada nota, cada improviso, cada momento que a banda estava prestes a oferecer. Uma entrega total, tanto do palco quanto da plateia.
Ao final de uma das primeiras canções, antes de emendar “So Much to Say”, Dave Matthews cumprimentou o público com simpatia. Na sequência, durante “Too Much”, agradeceu aos fãs por entenderem seu inglês, já que — como confessou com humor — não fala português. Mas foi em “You Never Know” que veio a interação mais inusitada: entre risos, Dave começou a repetir diversas vezes “cheese bread, cheese bread”, arrancando gargalhadas da plateia.

Nem todo mundo entendeu a piada na hora, mas quem esteve na coletiva de imprensa — como o Sonoridade Underground — sabia o contexto: Dave havia contado que estava encantado com o Brasil, especialmente com a culinária. E que não conseguia parar de comer pão de queijo — “sempre que acabava, alguém trazia mais… e eu comia mais”, brincou. Um momento divertido que só reforçou a conexão genuína entre artista e público.
Em meio a um setlist com vinte faixas, Dave reservou um espaço especial para “Gravedigger”, canção intensa e melancólica de sua carreira solo, lançada no álbum Some Devil (2003). Spoiler alert: essa foi uma exclusividade da primeira noite — no dia seguinte, o repertório foi totalmente dedicado às músicas da Dave Matthews Band, com exceção de dois covers incríveis (sobre os quais falaremos mais adiante).

Com algumas amizades e parcerias no Brasil, havia bastante expectativa sobre possíveis convidados nos shows por aqui — e a surpresa veio durante “What Would You Say”. Dave Matthews chamou ao palco o músico, harmonicista e produtor Gabriel Grossi, que fez uma participação brilhante tocando gaita. A faixa, que já é naturalmente dançante e cheia de camadas instrumentais, ganhou ainda mais vida com o solo envolvente de Grossi. O público reagiu com entusiasmo, transformando o momento em uma verdadeira celebração — um dos pontos altos e mais festivos da noite.
No encore, “Peace On Earth” foi apresentada em um momento intimista, com Dave Matthews sozinho no palco, apenas com voz e violão — uma pausa contemplativa antes da despedida. Na sequência, “Ants Marching” trouxe de volta a energia da banda completa, encerrando o primeiro dia do Best Of Blues and Rock And Dave, que, honestamente, foi um espetáculo à parte.
Segundo dia: Barão Vermelho e Soul Lee – (com Paula Lima)
O projeto Soul Lee é uma homenagem vibrante e afetiva à rainha do rock brasileiro, Rita Lee. Idealizado pela cantora Paula Lima, o show revisita os grandes clássicos da carreira solo de Rita e de sua fase com os Mutantes, trazendo releituras com forte influência de soul, funk e MPB — gêneros que marcam a identidade artística de Paula.
Canções como “Ovelha Negra”, “Menino Bonito” e “Lança Perfume” foram alguns dos destaques de um repertório repleto de clássicos, emoção e saudade. Além da sensível e poderosa homenagem a Rita Lee, vale um destaque especial para a excelência técnica da banda, formada por três guitarristas, baterista, tecladista, baixista e trombonista. Paula Lima brilhou com uma performance impecável — interpretando com respeito e personalidade, e cantando com potência e sensibilidade em cada verso.
Já o Barão Vermelho subiu ao palco mostrando por que é um dos pilares do rock nacional. A banda entregou um show enérgico, carregado de clássicos que atravessam gerações, como “Pro Dia Nascer Feliz”, “Bete Balanço” e “Por Você” — que foram cantadas em coro pelo público. Com a formação atual consolidada e entrosada, o grupo mostrou segurança, atitude e respeito à própria história, mas sem soar preso ao passado. A apresentação foi potente, nostálgica e ao mesmo tempo viva, confirmando que o Barão segue relevante e afiado nos palcos. Foi uma verdadeira celebração do rock brasileiro em um festival que soube abrir espaço para suas raízes.
Richard Ashcroft e Dave Matthews Band de novo? Sim, de novo. É o mesmo, porém não tem nada de igual.
Embora os dois shows de Richard Ashcroft tenham setlists bastante semelhantes, houve um cuidado sutil em renovar o início da apresentação no segundo dia, oferecendo algo novo ao público — sem abrir mão do compromisso que o próprio artista mencionou em coletiva: entregar exatamente o que os fãs esperavam (e mereciam) após tantos anos de espera.

Na primeira parte do show, Ashcroft incluiu “Music is Power” e “Lover”, duas faixas de sua carreira solo. Esta última, aliás, é seu lançamento mais recente, divulgado em Maio, e foi recebida com entusiasmo pelo público, equilibrando novidade com nostalgia. A partir da metade do set, o repertório seguiu a mesma linha do dia anterior, com os grandes sucessos do The Verve. Além disso, para a segunda apresentação, Ashcroft subiu ao palco vestindo uma clássica camisa amarela da Seleção Brasileira — gesto que reforçou sua conexão com o público.
Com a Dave Matthews Band, a única constante é a mudança — e os fãs mais antigos já sabem bem disso. A banda é conhecida por suas turnês longas e por nunca repetir o setlist, o que torna cada show uma experiência única. Não à toa, conheci um americano que estava assistindo ao seu 225º show da banda. Pode parecer exagero, mas será que ainda falta alguma música para ele ouvir ao vivo? Sinceramente, não duvidaria. Essa imprevisibilidade é parte do charme e da devoção que o DMB inspira.

Outra constante na mudança foi a participação de Gabriel Grossi. O músico retornou ao palco, mantendo a gaita como protagonista, mas desta vez em uma emocionante versão de “#41”, que foi lindamente interpretada e arrancou aplausos calorosos do público.
Entre as novidades da segunda noite, destaque também para os dois covers incluídos no setlist. A banda apresentou uma poderosa leitura de “All Along the Watchtower”, de Bob Dylan, com uma surpreendente interpolação de “Stairway to Heaven”, do Led Zeppelin — um momento de arrepiar. Já no encore, veio “Just Breathe”, do Pearl Jam, carregada de emoção e acompanhada de uma mensagem de protesto político contra os conflitos entre Israel e Palestina, mostrando que, além da música, o palco também pode ser espaço de consciência e reflexão.
No entanto, algo permaneceu idêntico nas duas apresentações e merece destaque nesta resenha: o pôster oficial dos shows da Dave Matthews Band no Brasil foi criado pelo artista e ilustrador brasileiro Pedro Correa. A escolha reforça o cuidado da banda em valorizar a cultura local e demonstra um olhar sensível e respeitoso ao país que os recebeu — um gesto simbólico, mas cheio de significado.
Os dois dias de festival entregaram não apenas grandes shows, mas experiências singulares e memoráveis. Richard Ashcroft e Dave Matthews Band, cada um à sua maneira, mostraram respeito pelo público brasileiro, seja pela escolha do repertório, pelas interações emocionantes ou pelos gestos simbólicos que fortaleceram a conexão com quem assistia. O Best of Blues and Rock, mais uma vez, provou que música ao vivo vai muito além do som: é sobre entrega, emoção e encontros que ficam na memória de quem viveu.