Texto por Guilherme Goes e Fotos por Andre Santos
O cultuado Betty, lançado pelo Helmet em 1994, é celebrado no universo do rock por representar um passo ousado e inovador na interseção entre o metal, o hardcore e o rock alternativo. Após o sucesso de Meantime (1992) e já sob contrato com uma grande gravadora como a Interscope, o grupo surpreendeu ao rejeitar fórmulas fáceis e aprofundar sua proposta artística. Em vez de buscar um som mais acessível, o Helmet apostou em uma sonoridade densa, marcada por riffs com ritmos sincopados, afinações baixas e uma precisão quase cirúrgica — elementos que viriam a influenciar diretamente bandas como Deftones e Korn na década seguinte.
Ao mesmo tempo, Betty vai além do peso característico do grupo e incorpora passagens experimentais que expandem os limites do metal e revelam a ambição da banda em romper com padrões estabelecidos. Embora não tenha repetido o impacto comercial de seu antecessor, o álbum conquistou status de obra cult pela integridade artística, originalidade e impacto duradouro. Com o passar dos anos, passou a ser visto como um disco à frente de seu tempo — uma peça essencial para entender a transição do rock pesado nos anos 90, que abriu caminho para uma geração mais preocupada com inovação do que com as paradas de sucesso.
Na última quarta-feira (30), véspera de feriado, o público paulistano pode conferir a obra-prima do rock alternativo sendo executada na íntegra. O evento aconteceu no palco do tradicional Carioca Club.
Sangue novo agitando a cena
Mesmo com a concorrência do Bangers Open Air — importante festival de heavy metal marcado para o mesmo fim de semana — e a expectativa de um dia de folga propício para viagens, o público não hesitou em comparecer ao show. O evento começou de forma tímida, mas logo a plateia foi chegando em peso, até lotar a casa de espetáculos. Chamou a atenção a presença expressiva de pessoas já na faixa dos 40 anos, muitos dos quais provavelmente acompanharam a trajetória da banda norte-americana nos tempos áureos da MTV.
Para abrir a noite, duas bandas emergentes da cena foram escaladas: Treva e Debrix. Apesar da curta trajetória, ambas demonstraram competência musical e uma postura de palco surpreendentemente profissional.
Pontualmente, o Treva deu início à sessão de música ao vivo. Liderado pelo carismático vocalista e guitarrista Felipe Ribeiro — já conhecido pelo trabalho à frente do Confronto — o grupo foi formado em 2021, em plena pandemia. O nome da banda, inclusive, surgiu como reflexo do período sombrio vivido na época. Com uma sonoridade voltada ao punk rock, o Treva iniciou seu set com “Novo Amanhã”, e seguiu destacando faixas como “Onde Morre o Sol”, “Memórias e Reclusão” e outras composições marcadas por letras intensamente pessoais e carregadas de emoção.

Apesar do teor reflexivo das canções, a banda manteve uma performance energética, com os músicos se movimentando bastante no palco e incentivando a interação do público. Próximo ao fim da apresentação, Felipe fez um discurso em homenagem ao Dia do Trabalho, ressaltando a importância de cada trabalhador para que eventos como aquele se tornem possíveis. Em seguida, dedicou a faixa “Renasce em Dor” a Rafael, um grande amigo da banda que não pôde comparecer por motivos de força maior.
Embora carregue uma estética sombria — com roupas pretas, pesadas e um visual quase gótico — o Treva entrega no palco uma energia contagiante, cativando o público logo em sua primeira apresentação da noite.
Na sequência, foi a vez do Debrix subir ao palco. Vindo diretamente de São José dos Campos, o grupo tem se destacado nas redes sociais com anúncios ousados, nos quais afirma unir em sua proposta elementos de Alice In Chains, System of a Down, Metallica, Slayer e outros grandes nomes do rock. E, de fato, não se trata de exagero: o som da banda é marcadamente eclético, transita por várias vertentes do gênero e surpreende pela versatilidade. Nesta nova turnê, inclusive, o Debrix está acompanhando o Helmet como banda de abertura em diversas datas.
O quinteto iniciou sua apresentação com “Stray”, uma faixa com pegada direta de rock ‘n’ roll, marcada por um baixo pulsante e guitarras pesadas, que rapidamente conquistou os headbangers presentes. Em seguida veio “Push”, onde o vocalista Filippo Teixeira demonstrou influência clara do estilo vocal de Serj Tankian. A banda seguiu com “Brisa no Espelho”, uma composição inédita cantada em português.

Após agradar o público mais ligado ao metal, a banda cativou também os fãs de hard rock com “Picture Rose” e “Thunderstorm” — duas faixas de riffs marcantes e batidas envolventes. Próximo ao encerramento, aproveitaram o embalo para apresentar mais duas músicas inéditas em português: “Perigo” e “Nada a Declarar”. Ambas revelam um lado mais irreverente do grupo, flertando com o comedy rock, mas sem perder a pegada pesada.
O Debrix se mostrou uma verdadeira salada de influências — uma mistura ousada de estilos que, ao invés de soar dispersa, se equilibra de forma carismática. Uma banda capaz de dialogar com diferentes públicos dentro do universo do rock, do alternativo ao mais tradicional.
Após a saída do Debrix, uma seleção inusitada de jazz instrumental tomou conta dos alto-falantes do local, criando uma atmosfera curiosa e contrastante com o que viria a seguir. Depois de mais de 30 minutos de intervalo — tempo suficiente para que a casa ficasse completamente lotada, sem espaço sequer para se mover — os donos da noite finalmente subiram ao palco. Sem introduções grandiosas ou efeitos especiais, Page Hamilton (vocal e guitarra), Kyle Stevenson (bateria), Dan Beeman (guitarra) e Dave Case (baixo) surgiram de forma simples e direta, e, como esperado, abriram o show com “Wilma’s Rainbow”. O riff visceral da faixa incendiou o público de imediato. “I Know” manteve a energia em alta com sua batida contagiante, e foi em “Biscuits for Smut” que a plateia finalmente se entregou ao moshpit.
Com o terreno já conquistado, “Milquetoast” veio com um riff tão pesado que parecia comprimir o ambiente como uma tonelada sonora — e ainda assim, o baixo de Dave Case conseguiu se destacar com clareza, culminando em uma extensão instrumental entre bateria e guitarra que arrancou aplausos calorosos da plateia. “Tic” trouxe um riff compacto e extremamente agressivo, enquanto “Rollo” embalou o público com suas viradas de bateria marcantes, incentivando uma sequência de stage dives. A sequência seguiu intensa com “Clear”, “Beautiful Love”, “Speechless”, “Overrated” e “Sam Hell”, mantendo a galera em constante agitação — a ponto de exigir a intervenção dos seguranças em alguns momentos.

No entanto, apesar da recepção explosiva do público, chamou a atenção a postura reservada dos integrantes do Helmet, que executaram toda essa primeira parte do show sem qualquer interação verbal com a plateia. A energia estava toda na música — crua, direta e sem concessões.
No segundo bloco do show, Helmet revisitou diferentes fases da carreira ao dedicar uma música a cada álbum. Vieram “Swallowing Everything”, do Monochrome, “Blacktop”, do debut Strap It On, e “Dislocated”, do mais recente Left. O destaque, no entanto, ficou para dois clássicos absolutos do disco Meantime: “Unsung” e “Turned Out”, que foram cantadas a plenos pulmões pelo público, em um dos momentos mais intensos da noite.
No bis, o quarteto ainda presenteou os fãs com “Just Another Victim” — faixa criada em parceria com o House of Pain para a trilha sonora de Judgment Night — e encerrou com “In the Meantime”, que fez a plateia explodir em coro, reunindo as últimas forças para cantar junto até o último acorde.

Não é nenhuma surpresa o culto em torno do disco Betty: trata-se de uma obra verdadeiramente original, que combina de forma poderosa o peso característico das guitarras e baterias do heavy metal com nuances marcantes de experimentalismo. O Helmet, ainda que deixe a desejar na interação com o público, mostra-se uma banda extremamente profissional, focada na entrega precisa de sua música. No final, o evento entregue pela Powerline foi um grande presente a todos os headbangers da classe trabalhadora paulistana para celebrar com estilo o 1º de maio!
Setlist
Wilma’s Rainbow
I Know
Biscuits for Smut
Milquetoast
Tic
Rollo
Street Crab
Clean
Vaccination
Beautiful Love
Speechless
The Silver Hawaiian
Overrated
Sam Hell
Bloco 2
Swallowing Everything
Blacktop
Driving Nowhere
Bad Mood
Dislocated
Unsung
Turned Out
Bis:
Give It
Ironhead
Just Another Victim
In the Meantime